“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38)
Uma experiência de mais de um dia
John Wesley era um jovem pastor anglicano, que queria mudar a si mesmo. Ele se perguntava pela verdadeira fé, que não tinha; pela verdadeira confiança, que nunca demonstrara. Em busca de respostas, ele viajou para a América, entrevistou-se com morávios, judeus, espanhóis. Leu pietistas, aprendeu a arte do bem viver e do bem morrer, estudou a Bíblia, defrontou-se com pregadores leigos. Wesley dizia para si mesmo e para seus companheiros de jugo coisas que soam como: “Eu quero amar a Deus, mas não o amo. Quero ser um bom cristão, mas não o sou.” Peter Bohler, um morávio, até escreveu em seu diário que a vantagem que Wesley lhe demonstrou é que ele era sincero. Diante da busca que tanto inflamava seu coração, Wesley relata em seu diário:
“No dia seguinte, pois, ele (Peter Böhler), veio outra vez, com três outros, e todos testificaram sua experiência pessoal, unânimes no sentido de ser a verdadeira e viva fé em Cristo inseparável do sentimento de perdão de todos os pecados passados e de libertação de todos os pecados presentes. Aduziram a uma só voz, que essa fé é um dom, um livre dom de Deus; e que Ele certamente o concederia a toda alma que profunda e perseverantemente o buscasse. Eu não estava perfeitamente convencido, mas pela graça de Deus resolvi buscar esse dom até o fim, primeiro — renunciando, em absoluto, a toda dependência, total ou parcial, de minhas próprias obras ou justiça, nas quais havia realmente fundado minha esperança de salvação, embora não a conhecesse desde a mocidade; segundo — acrescentando ao uso constante de todos os outros meios de graça, a súplica insistente por esse objetivo, isto é, pela justificação, graça salvadora e plena confiança no sangue de Cristo derramado por mim, confiança posta nele como meu Cristo, minha única justificação, santificação e redenção.
Continuei assim a buscá-lo (embora com estranha indiferença, negligência, frieza e desusadas e frequentes recaídas em pecado), até quarta-feira, 24 de maio. Penso que era cerca de cinco horas da manhã quando abri meu Testamento nestas palavras: “Foram-nos dadas excessivamente grandes e preciosas promessas, de que seremos participantes da natureza divina”. (2Pd 1.4). Quando estava a sair, abri outra vez o livro nestas palavras: “Não estás longe do reino de Deus”. À tarde me pediram fosse à igreja de S. Paulo. A antífona era: “Das profundezas te clamei, ó Senhor; Senhor, ouve minha voz. Oh! que teus ouvidos considerem bem a voz do meu clamor. Se tu, Senhor, fores ao extremo de notar o que é feito perversamente, ó Senhor, quem subsistirá em tua presença? Porque em ti há misericórdia; por isso tu serás temido. Ó Israel, confia no Senhor; porque no Senhor há misericórdia, e nele a salvação é abundante. E ele redimirá a Israel de todos os seus pecados”.
Pela tardinha fui de muito má vontade a uma sociedade à rua Aldersgate, onde alguém estava lendo o prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos. Cerca de um quarto para as nove, enquanto ele descrevia a mudança que Deus opera no coração através da fé em Cristo, senti meu coração aquecido de maneira estranha. Senti e confiei em Cristo, Cristo só, para a salvação; e foi-me dada a segurança de que Ele havia tirado meus pecados, salvando-me da lei do pecado e da morte”. (Diário de John Wesley)
Então, ele foi de má-vontade a uma reunião na Rua Aldersgate. E lá, ele ouviu alguém ler o que Lutero escreveu, como Prefácio à Epístola de Paulo aos Romanos. Entre outras palavras de Lutero, Wesley ouviu:
“Fé não é aquela ilusão humana e sonho que algumas pessoas pensam que é. Quando elas ouvem e falam muito sobre a fé e ainda veem que nenhum progresso moral e nenhumas boas obras resultam disso, elas caem no erro e dizem: "Fé não é tudo. Você deve fazer obras, se quer ser virtuoso e ir ao céu". O resultado é que, quando elas ouvem o Evangelho, tropeçam e fazem para si mesmas, com suas próprias forças, um conceito em seus corações que diz: "Eu creio". Este conceito, pensam ser fé verdadeira. Mas desde que isso é uma fabricação humana e pensamento e não uma experiência do coração. Isso não sucede em nada, e então segue-se nenhum progresso.
Fé é um trabalho de Deus em nós, o qual nos muda e nos traz a nascer um novo, proveniente de Deus (cf João 1). Ela mata o velho Adão, nos faz pessoas completamente diferentes no coração, pensamento, sentido, e todas nossas forças. E traz o Espírito Santo com ela. Como é viva, criativa, ativa, cheia de poder, a fé! É impossível que a fé em alguma ocasião faça parar o fazer bem. A fé não pergunta se boas obras estão para serem feitas. Ao contrário, antes que ela seja questionada, já as fez. Ela está sempre ativa. Seja quem for que não faça tais obras está sem fé; ele anda se apalpando e se examinando em busca de fé e boas obras, mas não sabe o que a fé ou boas obras são. Mesmo assim, tagarela com muitas palavras sobre fé e boas obras.
A fé é uma confiança viva, inabalável na graça de Deus; é tão certa, que alguém poderia morrer mil vezes por ela. Esse tipo de confiança e conhecimento da graça de Deus faz uma pessoa cheia de alegria, confiante e feliz, com consideração a Deus e a todas criaturas. Isso é o que o Espírito Santo faz pela fé. Por meio da fé, uma pessoa fará bem a todos sem uso de força, espontânea e alegremente. Servirá a todos, sofrerá tudo pelo amor e louvor a Deus, o qual lhe tem mostrado tal graça. É tão impossível separar obras da fé como separar as chamas do brilho do fogo.” (trecho do Prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos)
Então Wesley entendeu que estivera o tempo todo buscando em si mesmo algo que só Deus tinha a oferecer. E mais: que Deus estava diante dele, com os dedos abertos, deixando escorrer por entre eles um rio de graça e amor sem fim. Foi então que Wesley creu, e num minuto ele e Lutero superaram a barreira de tempo e espaço que os separava, e fizeram-se irmãos na descoberta de um Deus que é amor. Foi então que Wesley confiou. E porque ele creu, e porque pregou, e porque testemunhou e repartiu o calor de seu coração com todos a quem viu, é que nós também nos tornamos herdeiros e herdeiras da reforma.
O justo viverá pela sua fé
Habacuque, o primeiro a fazer esta afirmação, a faz num contexto atrelado a uma sobrevivência iminente frente a um império que ataca. Só é possível sobreviver por causa da fé e para tê-la é preciso ser justo. A justiça – Tsedaká – no contexto judaico é uma prática concreta, reveladora do caráter de quem a pratica. Por isso muitas vezes o termo é traduzido por caridade. Era preciso que o judeu realmente consciente de sua fé a fizesse perceptível e notável por meio daquilo que fazia no dia a dia, particularmente em favor de quem mais precisasse.
A justiça pela fé encontra seu fundamento na fidelidade de Deus. Ele é confiável em suas promessas – contexto no qual o autor de Hebreus insere a frase retomada de Habacuque. Quando a fidelidade de Deus encontra eco na fé humana, o milagre torna-se possível: a justificação. Esse é o contexto apresentado por Paulo em sua fala em Romanos. A justiça de Deus é manifesta, possibilitando o cumprimento da lei, não por obrigação ou constrangimento, mas pela liberdade.
Podemos ver que as leituras neotestamentárias do texto de Habacuque enxergam a fé como uma questão agora que vai do presente à eternidade. Dizem que a primeira vez que Lutero entendeu o significado de ser justificado pela fé foi quando ele estava subindo as escadarias de Pilatos e ouviu nitidamente essas palavras: “O justo viverá pela sua fé”. Ele, envergonhado, levantou-se dali, entendendo que nenhuma penitência poderia subsistir no lugar da verdadeira fé e que jamais o ser humano poderia por si mesmo adquirir a justiça divina ou sentir-se salvo.
O que tem isso a ver conosco hoje?
Eu fico muito impressionada com o relato desses homens de Deus do passado e também das mulheres que, por raridade de poderem escrever suas narrativas e fazê-lo em primeira pessoa, é algo mais escasso para nós como resgate histórico. Ao invés de focar nos resultados de suas experiências, porém, eu gostaria de destacar algo que me parece similar em todas essas histórias e que talvez nos falte hoje, quando pensamos em uma igreja reformada, sempre reformando...
Sua profunda insatisfação consigo mesmos – o senso de inadequação diante do mundo e do sentido de sua existência era algo que chega a ser uma dor física para muitos desses reformadores. Eles estavam sinceramente indagando pela melhor forma de viver e de agir em nome de Deus neste mundo. Não eram movidos por suas crenças, talvez muito mais por suas dúvidas. Não eram movidos por suas capacidades, muito mais por seu sentimento de serem “gauches na vida”, como diz o poeta. Não se sentiam confortáveis em seu status clerical ou social, mas isso chegava a ser um fardo para eles. Então, todas as mais importantes reformas e avivamentos que aconteceram no mundo começaram, de certa forma, porque alguém estava se sentindo inadequado, incapaz e limitado. Isso é uma importante lição e não pode ser esquecida.
Seu agudo senso de existência no mundo – além do aspecto pessoal, esses homens e mulheres percebiam que o mundo estava distanciado dos propósitos divinos. Não se tratava apenas de teologia. Eles estavam atentos a tudo o que acontecia ao redor, entendendo que a justiça divina é concreta e contextual. Onde estava a pregação metodista? Nas prisões, nas fábricas, no parlamento apoiando leis libertárias, nos sindicatos, na luta pela abolição, no discipulado focado na transformação das situações de vida como bebidas, violência, jogatina e combate aos vícios, na educação para promover o pensamento e o discernimento... Uma reforma que não transforma o mundo serve para quê? Perguntariam eles a nós hoje, no centro de nossos templos cada vez maiores e mais tecnológicos e cada vez mais longe das ruas. Tudo, absolutamente tudo lhes interessava e despertava atenção como espaço da atuação divina na vida humana.
Sua profunda sede de Deus – O povo antigo tinha essa boa mania de escrever suas orações. Por isso a gente pode conhecer seu estado de alma. A angústia que muitos deles revelam pela presença de Deus é comovente. Lutero, em 1527, escreveu: “Vê, Senhor, que sou um vaso que carece muito de ser preenchido. Meu Senhor, enche o vaso, pois sou fraco na fé. Fortalece-me, pois sou frio no amor. Aquece-me e torna-me quente, para que meu amor transborde para o próximo. Não tenho fé robusta e forte, acontece que sou acometido de dúvidas, não podendo confiar em ti inteiramente. Ó Senhor, ajuda-me, faze crescer minha fé e confiança. (...) Por isso quero ficar contigo, não preciso dar de mim para ti: de ti posso receber. Amém.” Muitas vezes nós estamos hoje tão cercados e cercadas de certezas, nos sentindo em muito superiores aos demais homens e mulheres. Nosso conhecimento nos cega, nossa teologia nos coloca em vaidade, nossa história nos enche de orgulho, mas nossa alma não tem sede de Deus. Nossas certezas são todas exteriores e não fruto da experiência. Se fôssemos realmente colocados à prova, talvez muitos de nós, cristãos do século 20, veríamos que não somos capazes de ser justos ou de viver por causa da fé.
Então, precisamos de reforma e de corações aquecidos...